Notícia

Síndrome de Noé reúne especialistas em Sintra

13.11.2019

Começam por ter dois, três animais de estimação. Com o tempo, vão juntando cada vez mais. Chegam a ter centenas. Estas pessoas podem sofrer de Síndrome de Noé, uma doença que as leva acumular animais de companhia. O tema esteve em análise no seminário Transtorno de Acumulação – Direito, Bem-Estar Animal e Saúde Pública, realizado na semana passada, no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra.

A conferência reuniu especialistas de diversas áreas – juristas, médicos-veterinários, psicólogos, psiquiatras, representantes das forças de autoridade – que, em conjunto, tentaram refletir sobre este fenómeno que não é recente, mas que, dado o crescente envelhecimento da população portuguesa e as situações cada vez mais frequentes de isolamento social, tem tendência para se agravar num futuro próximo. Os participantes no seminário procuraram traçar um quadro o mais completo possível da situação atual, bem como definir estratégias de combate a esta perturbação, que não só põe em causa o bem-estar dos animais envolvidos, como, em muitos casos, acaba por originar situações graves, nomeadamente no que diz respeito à saúde pública.

A Síndrome de Noé caracteriza-se por uma acumulação negligente de animais, aos quais deixam de ser garantidos os cuidados básicos veterinários, de higiene, de espaço ou até mesmo de alimentação. Os acumuladores vivem geralmente isolados e são incapazes de reconhecer os efeitos que o seu comportamento tem no bem-estar dos animais que mantêm a cargo. Quando confrontados, tendem a negar ou desvalorizar a magnitude do problema e das condições em que tanto eles próprios como os animais vivem.

Esta síndrome, pode ou não, surgir associada a uma outra, a Síndrome de Diógenes, relacionada com a acumulação descontrolada de objetos ou mesmo de lixo. Em ambos os casos, os primeiros sinais são detetáveis logo na adolescência, agravam-se na idade adulta, mas acabam invariavelmente por ter o seu pico de prevalência numa idade mais avançada.

É comum os acumuladores deixarem de saber ao certo quantos animais têm, reconhecendo apenas aqueles que lhes são mais próximos. Por isso, não são raras as intervenções domiciliárias que se deparam com animais já cadáveres lado a lado com outros vivos, mas em condições de saúde e higiene extremamente deficitárias.

As situações de acumulação de animais são geralmente sinalizadas por terceiros — familiares ou vizinhos –, que se sentem incomodados e decidem apresentar queixa. Só que, regra geral, a denúncia dos casos acontece vários anos depois de as situações surgirem, o que leva a que quando a intervenção acontece o cenário seja já muito complicado.

A retirada compulsiva dos animais nem sempre é a resposta mais adequada. Vários especialistas presentes no seminário explicaram que os acumuladores, além de pouco cooperantes, tendem a encarar este tipo de resposta como uma quebra de confiança, o que acaba, muitas vezes, por inviabilizar qualquer tipo de colaboração futura com as autoridades. Ainda assim, ela é concretizada sempre que à situação de acumulação surgem associados indícios de maus-tratos, o que acaba por ser bastante frequente.

A abordagem terapêutica foi defendida por vários intervenientes no seminário como uma situação ideal, ainda que na prática difícil de concretizar. Talvez por isso mesmo a taxa de reincidência da perturbação de acumulação ande muito perto dos 100%.

Calcula-se que a Síndrome de Noé afete, em termos globais, entre 2% a 6% da população. Este é, no entanto, aquilo que os especialistas definem como um problema iceberg, ou seja, receia-se que possa haver uma epidemia oculta de casos ainda por identificar, sobretudo nas grandes cidades.

Para todos os participantes no encontro, ficou claro que as soluções não serão fáceis nem imediatas e que passarão sempre por uma colaboração multidisciplinar, a única forma de encontrar possíveis respostas para a questão. As conclusões da conferência, organizada pela Câmara Municipal de Sintra, em parceria com o Observatório Nacional para a Defesa dos Animais e Interesses Difusos (ONDAID), a Provedoria da Justiça, a Direção Geral de Saúde e o Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (CINTESIS) da Universidade de Aveiro, vão ser alvo de análise por parte de um grupo de trabalho já constituído envolvendo todas estas entidades, que conta apresentar algumas conclusões no início do próximo ano.